domingo, 17 de março de 2013

A mensageira da morte.


Renata acordou emaranhada em passado. Enquanto recobrava a consciência percebeu o pouco tempo desse passado. Eram as lembranças de passos em direção à porta de seu quarto.Tão recentes que ainda podia farejar os ecos das palmadas sobre a madeira do assoalho.
Encontrava-se entorpecida, imóvel. Seu corpo pesava toneladas e sua alma era éter vedado em uma prisão de chumbo. Levantou a cabeça com muita dificuldade. Olhava em volta tentando desnudar a densa penumbra de seu quarto, mas seus olhos ainda falhavam, com o dilatar lento de suas pupilas. Quem sabe pelos sonhos estranhos e luminosos que tinha antes de ser despertada do seu sono.
Estava acordada, agora tinha certeza. Em sua luta para vasculhar o quarto ela se deu conta da figura pálida ao pé de sua cama. Era terrível agora perceber que seu corpo não podia se mover. Que estava fora de seu próprio controle.
A figura ao final do cobertor. Um rosto comprido, com sulcos fundos e marcados, na face uma expressão de pavor. Os olhos negros em sua totalidade, como duas bolas de obsidiana, a não ser por um ponto branco por onde irradiavam os ódios da alma daquela entidade. Ódios da riqueza, luxuria e soberba misturados ao desespero da fome e abandono. Os dentes, a mostra por conta dos lábios esturricados, eram cumpridos e finos, parecidos com os de um gato, porém, chapados nas extremidades. Sem cabelos e tão branca que poderia ser vista no fundo da caverna mais escura ou tumba mais selada. Usava uma capa. Que deixava somente a mostra as mãos, longas e marcadas, e a cabeça. Uma das mãos da criatura estava apontada para cima, com os dedos em uma posição aleatória e espalhada. A outra por sua vez estava acima dos pés da moça, cerrada em forma de ovo.
 Ali estavam Renata e a entidade, que olhava profundamente em seus olhos sem esboçar expressão ou reação. O encarar daquele monstro parecia uma faca sendo enfiada no meio do seu estomago sem nenhuma pressa.
O silencio era uma tortura.
A criatura lentamente abre a mão que estava em ovo. Renata sentia a respiração exigir mais de seus pulmões. Seu coração estava tomando velocidade. A mão se abre, e revela uma borboleta rubra, enorme, com um palmo de envergadura, olhos grandes e reluzentes que se destacavam na escuridão por causa de seu brilho escarlate.
Mensageira
Então, o inseto saiu num voo descoordenado. Renata estava em desespero nesta hora. Ela tentava a todo custo acompanhar seu voo, mas tudo que conseguia era ouvir o frenético bater de asas contra o teto e as paredes do quarto. Ela temia o pouso, mais do que tudo. Lutava com todas as forças para recobrar o controle de seu corpo, mas ainda estava totalmente paralisada.
Quando seu coração parecia a ponto de explodir com a pressão dos batimentos, o que ela mais temia aconteceu. A borboleta caiu sobre seu plexo e ficou ali estanque, encarando-a com aqueles olhos rubros, abrindo e fechando as asas lentamente.
A sensação de desespero agora transcendia os limites da loucura.
As duas criaturas infernais a encaravam sedentas, quando a borboleta começou a escalar rapidamente seu tórax. Podia ouvir-se o tilintar das seis patas movendo-se asquerosamente para alcançar a cabeça de Renata.
Ela tentava explodir num grito desesperado, mas a sua voz não a ajudava. Saia somente um sopro mudo como se fosse um vento fraco batendo contra a janela.
A borboleta andava sobre o rosto da menina fazendo voltas em seu nariz, boca e olhos como se quisesse desenhar um símbolo macabro na face de Renata. As patas do inseto eram pegajosas e a aderência contra a pele da moça fazia doer as bochechas.
Nesta hora a entidade soltou sua voz cavernosa:
- Uma vida vai e outra fica, para reparar a injustiça cometida.
A garota agora sentia a alma se comprimir nas extremidades do corpo, como se quisesse explodi-lo para se libertar da tortura que sofria. Todo esforço parecia agora ter certo resultado. Ela podia mexer os dedos lentamente.
A borboleta interrompeu os círculos macabros como se sentisse a recuperação da garota com suas asquerosas e longas antenas. Desceu então com velocidade para parte traseira do seu pescoço, muito perto do lado direito da nuca. No ápice da recuperação da garota, ela sentiu o penetrar de duas pequenas hastes em forma de kruki na sua pele. Eram queliceras.
A dor era lacerante… Mal pode acreditar. Havia sido picada por uma borboleta.
Provavelmente era um tipo venenoso não conhecido ou se tratava de um ser sobrenatural do inferno que causava toda aquela dor.
Com certeza era venenosa. Podia sentir um liquido acido e fervente escorrendo para dentro deseu corpo. Deixava-a tonta. Enfraquecia agora seus batimentos e podia sentir os espasmos do diafragma os quais faziam a respiração falhar.
Sentia a morte tragar-lhe. Naturalmente, mediante aquela tortura atemporal, a morte se tornava um alivio justo.
Não era justo. A luta que sua mãe tivera em seu parto… Todos contavam os momentos de desespero de uma mãe que estava tentando trazer ao mundo clandestinamente essa criatura amada, que nem se quer chorava. Arriscava a própria vida para dar a luz a uma criança que muito provavelmente não iria sobreviver. Estava fraca, pequena e a hemorragia resultante daquele tombo poderia ser o destino final para as duas.
Será que o destino conspira e golpeia contra a vida de certas pessoas? Será que a ordem natural no caso da genealogia de Renata é a morte, total e inequívoca?
Nessa hora, como uma sobrevivente, Renata investiu com todas as forças na mão direita tentando arrancar o inseto que estava grudado no seu pescoço. Ela envolveu as asas e o tórax macabros da borboleta com a mão e começou a puxar para longe de seu corpo. As asas se separaram do tórax da monstruosidade.
Renata sentiu-se um galho de roseira arrancando as próprias folhas. Houve uma ressonância seca e brusca do o abdômen do inseto batendo de volta contra o seu pescoço, e após, a pressão das patas se reposicionado na pele.
 A sua inimiga agora estava cheia de fúria. Mordeu com mais força na tentativa de se fixar melhor na carótida da garota e aumentou a dose de veneno injetada em sua circulação.
 Renata investiu novamente. Agora com a força do desespero, ela cercou o tórax da borboleta com os dedos em forma de pinça e puxou para fora do eixo de ataque. A sensação tátil era asquerosa. Sentia os respiradores traqueais do inseto arqueados, inflando, para manter a firmeza do exoesqueleto duro, que resguardava o interior mole e gosmento.
 O tórax do inseto cedeu à pressão, explodiu e se deformou em dois pedaços menores. Um ficou na mão de Renata pulsando em movimentos involuntários e o outro persistia na tarefa de dar uma morte horrenda a jovem.
A agonia causaria inveja aos torturadores do regime mais cruel.
A jovem começou a repetidamente puxar, estapear e arranhar o monstro, numa descarga descompensada de adrenalina. O inseto se partia em mil. Se desfazendo aos poucos. A gosma se espalhava e se misturava com o que pelo cheiro tinha certeza que era sangue. O inseto agora não existia, havia sido triturado pela garota. E ainda assim ela sentia duas pequenas facas na sua pele.
 Era a cabeça do inseto que ainda persistia bravamente. Então ela a agarrou com uma pinça, formada pelo seu dedão posicionado contra a metade do indicador dobrado. Puxou com tudo que lhe restava. A sua pele elástica se esticava meio palmo, causando uma dor lacerante. As queliceras aos poucos trepidavam para fora. A sensação era de retirar um pedaço de arame farpado enganchado nas vísceras de um animal descuidado que se estrepou nos limites de uma fazenda. Fibras sendo cortadas e jogadas para fora dolorosamente. Eram os oito milímetros mais perturbadores que se tinha noticia.
 Finalmente a cabeça cedeu e Renata sentiu a vitória em seus dedos. Olhou para seu troféu e ele estava fechando e abrindo seu mastigador grotesco involuntariamente. Os olhos da borboleta brilharam em um vermelho vivo, revelando que suas mãos estavam cheias de sangue.
 A ultima coisa para se lembrar naquela noite era a entidade e seu rosto bizarro se cerrando na escuridão. Olhando. Com aqueles olhos tenebrosos, onde se destacavam as pupilas brancas no centro daquele pretume obisidiano.
A garota simplesmente se rendeu ao cansaço e desmaiou.
 Na manhã seguinte, os olhos se abriram sem remorso de encontrar a figura bizarra novamente instalada em seu quarto. Parecia que Renata havia acordado pela primeira vez em sua vida; sentia-se na condição dos que testaram as teses dos existencialistas. Debruçaram sobre o parapeito da vida e se deslumbraram com a profundidade da própria morte.
 Lembrava perfeitamente do acontecido, que, por medo, quem sabe, passou a encarar como um sonho.
 Durante a tarde de sábado Renata repôs o sono que havia sido perturbado na madrugada de sexta. Teve profundos sonhos embriagados sobre um amante que não conhecia, o qual sua mãe insistia em dizer que não era boa coisa. Ela dizia algo sobre borboletas rubras…
 Nessa hora seu telefone tocou.
 Era seu pai, que lhe disse em tom de preocupação:
 -Renata, sua mãe não está bem, trouxe-a de manhã para o hospital.
 -O que aconteceu pai?
 -Eu não sei… Quando acordei ela estava desmaiada fora da cama. Os médicos estão
suspeitando de envenenamento!
 Nesta hora Renata se lembrou do monstro rubro que invadiu seu quarto, causando-lhe terror. Ela inferiu, num lapso de intuição, imediatamente que poderia ter ocorrido o mesmo com sua mãe. Perguntou qual era o nome e endereço do hospital, em cinco minutos estava pronta, dentro do carro.
 Ela dirigiu atordoada. O tempo todo tentando arrancar dos dedos firmes da memória, do ultimo degrau de sua consciência, o que sua mãe havia dito naquele sonho diabólico.
 “As borboletas rubras…” “borboletas rubras… São…”
 Em vinte minutos chegou ao hospital e lá encontrou seu pai transtornado. Transfigurado em uma espécie de animal afoito, com os olhos cheios d’agua. O rosto bonito e confiável parecia definhado por cem anos de dor e sofrimento.
 Renata se viu tão assustada com o a cena, que sem prestar nem um socorro ao pobre homem, indagou com violência maternal:
 -Por que não me chamou antes?
 -Sua mãe tem anemia, eu achei que era só um desmaio corriqueiro. Desculpe-me – O Homem
desabara em um choro que com o passar de dez segundo e um abraço da filha foi ficando mais desesperado.
 Renata finalmente se viu na necessidade de consolar o Pai. Em seguida teve que perguntar sobre o estado clínico da mãe:
 -E a mamãe?
 -Os médicos disseram que é um caso grave de envenenamento por loxoscelismo.- disse o homem ainda choroso.
 -Loxo… O que?
 -Veneno de Aranha…
 -Veneno de aranha?
 -Sim, mais que a dose letal… Eu não sei como! Três aranhas teriam que a picar para ela ficar deste jeito, no entanto só acharam uma marca de picada.
-Como assim? Aonde? – A garota voltou ao tom agressivo.
-No pescoso… Isso não faz diferença sua mãe tem pouco tempo. A situação ficou agravada pela anemia. Vá ver sua mãe, antes que seja tarde- Disse o homem colocando agora a mão na frente dos olhos e embaixo dos grandes óculos quadrados para esconder o pranto.
Renata não disse uma palavra. Ela se sentia flutuando em uma espécie de nuvem cósmica mórbida da cor rubra das asas daquela borboleta. Estava vendo a vida com uma espécie de Déjà-vu onde são omitidos os detalhes da memória, até o acontecimento da lembrança.
Flutuou até o quarto da mãe, que se encontrava devidamente sedada e com o soro anti-veneno sendo ministrado em vão. Já que os médicos desenganaram devido aos danos que já haviam sido causados. Estava lá sua progenitora, fazendo seguir a ordem natural das coisas com certa pressa, temos que admitir.
-Mãe- Disse Renata em voz melancólica e suave.
A senhora que apresentava poucos sinais de idade, mas que era extremamente magra e fraca por causa de sua doença abriu os olhos.
-Mãe, eu estou aqui.- Naquela hora a voz de Renata soou com Chopin.
A mãe de Renata fez sina para que ela tirasse a mascara de seu rosto, já que seus próprios braços teimavam em não lhe obedecer muito bem.
-Não mãe, a senhora precisa disso. Logo vai ficar boa!- Disse a menina acalentando a mãe.
A mãe tomou certo desespero no mesmo sinal. Tentando descer a mascara por si própria. Os sinais vitais estavam piorando. Renata então decidiu não contraria-la.
A mascara desceu até o peito, descobrindo a boca e o nariz. A senhora fez menção para que a filha chegasse mais perto. Renata se debruçou, como se precisasse ouvir por trás de uma porta e esperou aquelas que ela intuía serem as ultimas palavras do ser que era Deus em seus ouvidos:
 - A borboleta!
Renata sentiu a sua espinha comprimir com toneladas de cargas elétricas todos os seus nervos, sentiu o arrepio subir a sua nuca, descer aos braços e pernas, as pupilas se dilatarem e o corpo inteiro entrar em colapso. Sentiu vontade de chorar, mas por algum motivo não pode fazer. Sentiu vontade de morrer, mas escapara da morte a pouco, e precisava viver para ouvir mais uma coisa.
-A borboleta rubra, é a mensageira. Ela trás a morte!- Disse sua mãe se esforçado para respirar. – Quando ela lhe visitar você terá que escolher ela.-continuou
-Ela quem mãe?- Indagou a garota com pressa.
-Sua…. Filha… Que virá dele… Não o conheça… Salve… Salve-se…- Os aparelhos de medição soaram o apito que indica que o coração estava parado. A mãe de Renata está morta.
Renata caiu sobre o peito da mãe e chorou como a mulher forte que era. Talvez impedida de amar alguém pela vida inteira pelo medo. O medo do próprio medo. O medo de se fazer uma escolha.
Percebeu que essa escolha, provavelmente, foi adiada pela mãe de alguma forma. E no meio da vida, ela teve que reparar o erro de trazer Renata ao mundo, condenando a garota à mesma finitude que possuía.
Renata percebeu que o destino escolhera a ela, sua mãe, quem sabe sua vó e bisavó, para não proceder com sua descendência. Algo que estava além de seu domínio sondava a sua existência.
Continuaria ela a viver normalmente, encontrar seu amante, e fadar sua filha à mesma finitude? Ou viveria no cárcere do medo para sempre, terminando a assim o sofrimento das mulheres de sua família?
E qual dos dois seria egoísmo?
Por Leonardo M. D. Bakargi